08/07/18

Devia morrer-se de outra maneira

Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer:
"Fulano de tal comunica a V. Exa. que vai transformar-se
em nuvem hoje às 9 horas. Traje de passeio".
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir 
a despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.
 "Adeus! Adeus!"
 E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
 numa lassidão de arrancar raízes...
 (primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )
 a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
 em fumo... tão leve... tão sutil... tão pòlen...
 como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de outono
 ainda tocada por um vento de lábios azuis...
 José Gomes Ferreira
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